terça-feira, 27 de julho de 2010

Ritual

Um ritual. É a melhor definição para se iniciar um dia. É assim que Ela prepara o café da manhã. Primeiro o despertador, depois o celular, uma sequência caótica de agudos para o ouvido de quem escuta. Todos desesperados para Ela terminar a noite, para Ela começar o dia. Mais um dos muitos vários dias de sua vida. Foi assim numa quarta-feira em que, ainda mais cedo, resgatou em si o cansativo dia que estava por vir. Era dia predestinado ao cansaço. Um misto de TPM anunciada com aflições homéricas. Um desatino só. Sua agenda estava lotada. E era evento para a vida toda. Era rodízio e era tarde também. Já passava das seis. E toda quarta-feira era o mesmo drama. Nada mudava. Acordava e discordava de tudo em seu redor. Os gatos dormindo, o corpo na cama, a água na cara. A falta de verbo. Odiava lavar o cabelo, pois Ela precisava secar em seguida. E o barulho do secador já entrava na sua cota de motivos para enxaqueca do dia. Antes de qualquer dor de cabeça, não refutava o hipocondrismo crônico que diagnosticara em alguma mesa de bar. Virava com água de pia qualquer analgésico besta. Remédios bastavam. Bastavam até passar o efeito. Existia uma coleção de brincos, mas Ela sempre repetia o mesmo. Às vezes, sequer combinava com o sapato do dia, mas era assim que Ela fazia. Sempre num ritual torto de ideias só delas. O relógio da sala, de tanto atrasar, já voltou um dia inteiro no tempo. Todo esforço na tentativa de não se atrasar. E refletia para si a parede vermelha. Ela não ligava para seu o pequeno fracasso. Vestia os sapatos, tomava o seu café e se indignava por ter sido um dia dona de bar. Deveria ser melhor, mas o café teimava em queimar ou aguar. Tomava a chave do carro sobre a algibeira da cama e, num segundo de paz, olhava para os seus 3 gatos. Sempre numa sequência barroca; uma dormia, outra comia e a terceira sempre me olhava. Amortecida por mim. Apaixonada por mim. Era minha paixão de patas. Assim Ela pensava e, como prova de amor eterno, piscava numa maciez dos olhos que só elas entendiam: Ela e sua felina trocavam juras toda manhã. Lembrava do atraso. Lembrava que precisava partir. Lembrava também que precisava de um livro. Qualquer um da prateleira. Qualquer um para ilustrar o seu dia cinza nas horas em que o computador resolvia dormir sem avisar. Nessas horas, Ela abria a primeira gaveta e lia sem culpa. Dessa vez tomou para si um pequenino que estava lançado no meio da sala. Talvez por alguma festa noturna dos gatos. Sempre com um copo no chão, pêlos e mais pêlos, a casa, quando acordava, era um resquício do que se fez noite. O livro causou estranhamento. Tamanho. Não gostava da falta de concordância. E pior: era verbal. Verbo não se brinca, pensava Ela. E, indignada, continuava a folhar o livro. Frases non sense, imagens non sense, era tudo non sense. Não tinha parágrafo e isso incomodava. Na verdade, tinha tudo para ser interessante, mas não era. Ela deixou para trás e correu até o elevador mais próximo. Esquecera a chave no lado de fora da porta, mas só notou o fato quando a história acabou. E já era tarde para retornar ao pensamento. Seu carro estava. Ela gostava de terminar frases em verbo. Aqui, já era excesso. Deixava que a frase se completasse sozinha. Ela dava vida a essas palavras que eram só delas. Ela era ciumenta e não sabia. Tinha ciúmes de tudo o que era parte dEla. Da música que, toda manhã, precisava decidir. Era sempre no porta-luvas. Nas pequenas epifanias. Escolhas mistas. Era disso que Ela vivia. Naquele dia, decidiu por não decidir. Num ato heróico de si mesma, tomou para si o rádio e apertou o botão vermelho. Antes de o som preencher o mínimo ambiente do carro, Ela entendeu. Sua dependência era também crônica: clássico, para os dias românticos e calmos e criativos e tudo o que é azul-areia; Janis ou coisa que o valha nos dias mais quentes. Era também do jazz, às vezes do blues e muitas vezes do bom e velho chorinho. Era amiga de Tom, Ela pensava aflita. Amiga das horas vagas. Das horas bandidas. Era só falar nele que já vinha aquela malemolência toda dEla, aquele gingado de se falar amando, de se falar devagarzinho. Ela encarnava. Achava que poucos a entendiam tão bem quanto Tom e Vinícius. Era ela e o seu eu-lírico. Na briga, eu-lírico ganhava. Sua companhia preferida, o tinha no peito como animal de estimação adestrado. Na rádio, Ela tinha preferência e não hesitava em dizer. Sua estação predileta, aquela dos clássicos. A música penetrava, enquanto o pé acelerava o caminho do dia. O locutor, no banco do passageiro, ditava o seu monólogo como chef de cozinha que orquestra o prato principal. Era um metido ‘a la francês’, falava com propriedade até demais para se falar de arte. Para mim, proprietário tem nome e sobrenome. Ela rosnava para o rádio, mas não conseguia evitar. Era Bach. E o trajeto até o escritório seria apaixonantemente orquestrado por quem sabe. Por quem de fato tem propriedade. O prédio caia no elevado. Era São Paulo sem semáforo e era o primeiro prazer. Acelerava como quem rasga o sorriso, com presa de primeiro encontro. Pisava fundo e não pensava no limite. Era imprudente. Ela sabia dos sentimentos guardados de dona Morte. Ela arriscava por um amor de outro mundo. Achava que era gato. Não morria nunca, na verdade. Era um tipo de eterno dolorido. Amava olhar os prédios ao redor. Ela tinha amigos e eles sequer sabiam. Sempre pensava em escrever um conto para cada um, mas lembrava que era da poesia, não era da prosa. Nunca escrevera um conto, nunca chegara ao final. Sempre sem pontos, Ela se bastava, mas, no fundo, o que queria era contar os dias. Amava dias azuis e aquele era um deles. Ela se inspirava facilmente. Era sempre cedinho. Tomava para si um gravador num lance de fúria e ditava o pensamento. Se pudesse, Ela pararia o carro, tomaria para si um papel e escreveria loucamente. Como numa sessão espírita. Verborragia que esmera os dentes. Ela não podia. Na cidade, a lei não era dEla. Para toda fúria, sempre existe um REC. E para toda poesia dita, um silêncio amargurado. Era a inspiração tentando tomar corpo, tentando ser voz. Poesia no filtro da fala perde tempero. O que não perde é a inspiração que se exalta por todo elevado. Ela dava nomes. Precisava etiquetar os ovos da geladeira. Antero, seu predileto, a aguardava sempre na volta. Sempre na noite, nunca cedo. Da janela, ele sempre acenava e escondia, provavelmente, da esposa, uma coleção de garrafas vazias. Talvez, na tentativa de completá-las, ou simplesmente para encarar a vida. Era vodka barata. Todas elas ficavam amontoadas no canto de fora da janela. Bebia escondido. Pensava Ela. Entre tantos outros vizinhos, o elevado encurtava na inspiração que se perdia. Era sempre assim: a música alta e a habilidade só dela de se maquiar entre os carros. O corretivo tinha tempo próprio; precisava acabar no semáforo da Barra Funda. Eram duas quadras para finalizar a base no rosto e uma quadra para o batom. Deixava o restante do caminho para possíveis retoques. E retoques era o que mais precisava para a sua vida. Nunca perdera o controle, sempre tomou para isso aquilo como parte. Era ritual, pensava novamente Ela. Amava o atalho que encontrara até o escritório. Era rua livre, de poucos buracos. Não respeitava muito a sinalização. Entendia amarelo como verde e, às vezes, vermelho também. Ela se bastava na ideia de não ter matado ninguém. Afinal, Ela seria incapaz disso. Poderia se matar tantas vezes, mas nunca uma mosca, nunca alguém. Nem ninguém.


Entre um viaduto e uma construção, não importando a ordem, mas sim o que era cinza, Ela decidiu pensar com os olhos de dentro e tomou para si o que era dos outros. Preciso de uma auditoria em minha vida. Preciso de ISO. É isso! Talvez a burocracia a salvasse de seus demônios. Quero o meu também. Ela achou o sentido daquele dia e tomou rumo para o que já era azul.


De quase sempre chegar, Ela não se bastava em acelerar mais. Tinha objetivos secretos. Ela se realizava quando completava uma sonata. Era o seu gozo matutino diante do asfalto. O tempo, entre um ponto e outro, numa sonata. A fazia pensar o dia como Clarissa Dalloway. Existe trauma por trás disso tudo, tinha medo do que é ciclo, do que é começo, meio e fim. Do que era um lado e o que era outro. Não gostava de rótulos teóricos. Ela não era boa, mas não era má pessoa. Ela era e ponto. Sempre avoada, Ela chegava à procura da melhor vaga. Desejava uma vaga própria. Aquela em que tivesse o seu Nome. Estrela de Hollywood em estacionamento de Blockbuster.


Naquele dia não foi assim, mas Ela sabia esquecer e sorria na presa de chegar. Parou o carro como quem para a brisa. Num sopro único. Ela guardou o rádio e arrumou o cabelo. A música era final. A sonata no seu adeus. O escritório pedia por pernas. Quatro na matemática exata. E para isso, bastavam degraus. Não tinha livro para deitar sobre a mesa. Naquele dia, lançou sobre o chão, ao lado da cadeira azul, a sua bolsa e tudo o que era conteúdo nela. Na busca por seu celular, se encontrou na ausência dele. Não em casa. Lembrava dele no trajeto. Refazia toda a bolsa. Tudo o que não precisava estava ali; clipes, pulseira, absorvente, moedas, lembranças. Não o celular. Como em bula de remédio, partiu logo para os efeitos genéricos e, num suspiro de antemão, sem pensar, apenas ação, correu o trajeto até o carro. Num desejo dos tantos do seu dia, aceleraria para a viagem da sua vida. Aquele caminho sem volta, mas que sempre volta no final. Não podia, era adulta. Ao menos, precisava ser. Não poderia ser impulso, mesmo nascendo do outono. Ela desistiu do caminho e da ausência. Regressou a volta. Agora, precisava de oito pernas, mas só tinha mãos. Ela cansava na metáfora barata dos seus pensamentos. Queria ideias. Ela não tinha memória e isso a intrigava, sequer irritava, de fato intrigava. Alguns diziam que era estresse, outros diziam que era descaso, poucos não ligavam. Ela era. Eu era. Foi esse o primeiro pensamento antes das borboletas do seu estômago. Ela sofria de poesia e, num dia desses, doutor dissera alexitimia. Era por toda sintomática. Era o acesso do sentir e ela precisava disso para viver. E pensou que poderia estar apaixonada ou com fome ou com qualquer outro sentimento que se dizia sintoma. Mas não, não havia amor ali, era só ausência. Ela sorriu gentilmente. E, gentilmente, foi sorrida. O almoço deixou por conta do acaso. Nada de casos, nem compromissos. Apenas carinho de si mesma. Ela precisava da própria atenção. Deixava de ser poesia.

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Miau

Eu amo de um jeito bicho, mansinho de gato. E de gato, me enrosco nas tuas pernas, te cuido felina e te sossego num dengo de amor só meu. ...