segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Relatos de Clarice


__ __ __ __ __ __ estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. (...) Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, se sem sequer precisar me procurar. (...) Não contava que fosse esse grande desencontro. (...) Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. (...) Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão. Oh, pelo menos no começo, só no começo. Logo que puder dispensá-la, irei sozinha. Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem da ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou ma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será a minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade. Não a claridade que nasce de um desejo de beleza e moralismo, como antes mesmo sem saber eu me propunha; mas a claridade natural do que existe, e é essa claridade natural o que me aterroriza. Embora eu saiba que o horror – o horror sou eu diante das coisas. Por enquanto vou inventando a tua presença, como um dia também não saberei me arriscar a morrer sozinha. (...) É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno. (...) Eu fora obrigada a entrar no deserto para saber com horror que o deserto é vivo. (...) ...ouve, por eu ter mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita. (...) Ah, despedir-se disso tudo significa tal grande desilusão. Mas é na desilusão que se cumpre a promessa, através da desilusão, através da dor é que se cumpre a promessa, e é por isso que antes se precisa passar pelo inferno: até que se vê que há um modo muito mais profundo de amar, e esse modo prescinde do acréscimo da beleza. (...) Agora preciso da tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. (...)

Um comentário:

Raffaella Ciavatta disse...

Ai mulher perfeita do caramba... uffffffff

Miau

Eu amo de um jeito bicho, mansinho de gato. E de gato, me enrosco nas tuas pernas, te cuido felina e te sossego num dengo de amor só meu. ...